Mulher, adúltera, condenada

O inglês Joe Wright chega ao topo da sua forma como realizador em Anna Karenina, sua terceira adaptação cinematográfica de um livro


São poucos os diretores que conseguem adaptar livros estimados do grande público para o cinema, mantendo a fidelidade ao "espírito" do original, o que é mais importante, e dando sua contribuição para esse material já conhecido. Afinal esse é o sentido de uma adaptação cinematográfica, conferir uma nova roupagem para uma obra original, preservando as intenções do autor. Joe Wright comprovou isso como nenhum outro em Orgulho e Preconceito, clássico de Jane Austen, em Desejo e Reparação, romance de Ian McEwan, conhecido por sua estrutura complicada, e agora com Anna Karenina, do russo Leon Tolstoi. Se em Orgulho e Preconceito Wright buscou a segurança e a discrição, e em Desejo e Reparação, o diretor abriu certas concessões e tomou as rédeas da autoria do projeto, ainda que não tivesse escrito o roteiro, para trazer a perspectiva de cada um dos personagens do triângulo principal sobre os eventos, em Anna Karenina ele foi mais ambicioso e conseguiu um dos resultados mais interessantes de sua jovem carreira, que também inclui os menos conhecidos O Solista e Hanna

Nessa nova adaptação do clássico de Tolstoi, Wright continua preservando seu referencial, mas mostra-se muito mais à vontade para dar sua interpretação sobre o romance, tomando liberdades no que diz respeito ao formato de seu filme, todo ambientado em um teatro londrino, o palco para a hipócrita sociedade russa do século XIX que condena ao exílio uma mulher pela prática do adultério. A ideia é mostrar como o grupo da época gostava de manter aparências em ocasiões públicas como bailes, eventos beneficentes, óperas e corridas de cavalo, escondendo toda sua degradação humana através de julgamentos implacáveis direcionados aos seus pares, os mesmos a quem antes direcionavam sorrisos e elogios. Pode parecer banal, mas trata-se de um tema revolucionário para a época, sobretudo se pensarmos que toda a perspectiva é de uma mulher, a personagem título do romance. 

O frescor que Wright traz a essa já conhecida história é, como já dito, na sua forma. Tudo em Anna Karenina é coreografado, como se os atores estivessem representando uma montagem inglesa do clássico. O diretor utiliza inúmeros planos-sequência para trocar cenários e fazer atores desaparecerem e surgirem em cena, um recurso que já tinha utilizado em Desejo e Reparação, a inesquecível sequência em que Robbie, personagem de James McAvoy, chega na baía e se depara com vários grupos de soldados, cada um em uma situação diferente. Outro recurso bem aplicado são as coreografias que não se aplicam apenas aos bailes, mas em todas as dinâmicas entre os atores, até mesmo na inspirada cena de sexo entre Anna (Keira Knightley) e Vronsky (Aaron Taylor-Johnson). Como no teatro, a iluminação tem importância fundamental para salientar a presença de determinado personagem em cena e a reação dos demais, como no momento em que, já morando com Vronsky, Karenina é observada por todos em uma ópera. Em todas as marcações, Wright conta com a ajuda de seu recorrente colaborador, o compositor italiano Dario Marianelli, vencedor do Oscar pela trilha de Desejo e Reparação. Em Desejo e Reparação, Marianelli tentava combinar sua partitura com o som da máquina de escrever da narradora Briony (Saoirse Ronan), aqui, todos os elementos são inspirações para Marianelli e se encaixam com harmonia em sua composição, que acompanha o ritmo e as emoções do filme como se tivesse sido feita pelo próprio realizador.

Toda a crítica à sociedade ostensiva e das aparências da Moscou do século XIX que Tolstoi intentou no romance está lá e Wright faz isso como se as ideias tivessem partido de sua própria vontade, como se ele tivesse escrito Anna Karenina, isso é se apropriar de uma obra, no bom sentido, meus caros. Tomar a responsabilidade para si e conferir vida e personalidade própria a uma história já conhecida. O tratamento que o diretor confere às tramas paralelas (Anna e Kitty) é singular, reforçando as ideias do próprio Tolstoi de que a vida neurótica das riquezas, das aparências e sob o crivo da religião (mundo de Anna, capitalismo) leva à infelicidade, enquanto que a vida simples em comunidade (mundo de Konstantin e Kitty, sementes do socialismo) é onde reside a felicidade em seu estado bruto.

Keira Knightley pode não fazer jus à tradição das excelentes atrizes inglesas, mas seu terceiro filme com Wright (ela já foi indicada ao Oscar por Orgulho e Preconceito e esteve em Desejo e Reparação) comprova que ela e o diretor são almas gêmeas. Os melhores desempenhos de Knightley no cinema são de suas parcerias com o diretor. Knightley contem seus excessos habituais e está inspirada ao personificar toda a natureza sufocada de Karenina, que oscila entre a vontade de transgredir e sua crescente culpa pelo adultério (notem como a todo instante a personagem pede desculpas pelos seus atos a Alexei ou Vronsky e como a todo momento se inferioriza no confronto com eles). É o melhor desempenho de Knightley, sem dúvidas. O mais interessante nessa frutífera parceria da atriz com o diretor é que Wright sabe muito bem onde se escondem as limitações dela como atriz, bem como o segredo para enaltecer suas qualidades, como deve fazer todo bom diretor. 

A grande surpresa de Anna Karenina, no entanto, fica mesmo por conta de Jude Law, outro ator conhecido por suas excessivas expressões faciais e que aqui vive com absoluto controle o pacífico Alexei, marido traído de Anna Karenina. Com Law, Wright fez o reverso do trabalho que costuma fazer com Keira, tentou tirar dele uma versão de si que não está acostumado a mostrar. Ao contrário do que se espera, Alexei deseja mais do que Anna manter as aparências de um casamento fadado ao fracasso e à infelicidade, controle é a palavra de ordem e o elemento balizador para o personagem e Law faz tudo isso de maneira meticulosa. Aaron Taylor-Johnson, Emily Watson, Alicia Vinkander (recém saída de O Amante da Rainha), Olivia Williams, Kelly Macdonald e Matthew Macfadyen (par de Keira em Orgulho e Preconceito e muito bom aqui como o irmão de Karenina) completam o elenco.

Externando os propósitos de Tolstoi através de seu formato, Joe Wright faz um de seus trabalhos mais bem executados com Anna Karenina. Ainda que continue esnobado por seu apreço à forma, não há como julgá-lo, é a maneira com que se expressa como diretor e entende os roteiros que dirige. Wright não é um mero cumpridor de orientações dos roteiristas, nem se intimida pelo peso do material que adapta para outro meio, se impõe, sem agressividade e com muita sensibilidade, como artista interessado em experimentar o cinema em suas inúmeras vias de criação e possíveis diálogos com outras manifestações, como a literatura (Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação), a música (nunca me esquecerei da cena em que Wright retira a imagem de cena e simplesmente mescla cores e a música composta pelo personagem de Jamie Foxx em O Solista) e agora, com Anna Karenina, o teatro com as duas anteriores . Como condená-lo por isso?




Anna Karenina, 2012. Dir.: Joe Wright. Roteiro: Tom Stoppard. Elenco: Keira Knightley, Jude Law, Aaron Taylo-Johnson, Olivia Williams, Emily Watson, Matthew Macfadyen, Kelly Macdonald, Domhnall Gleeson, Alicia Vinkander, Alexandra Roach, Ruth Wilson, Oskar McNamara, Aruhan Galieva. 129 min. UIP

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Chovendo Sapos: Mulher, adúltera, condenada
Mulher, adúltera, condenada
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