Crítica: Gravidade


Certas empreitadas cinematográficas valem a pena pelo percurso. Muitas histórias contadas no cinema ganham o espectador, pegam ele de jeito, mais pela forma com que são conduzidas do que por uma sucessão original de acontecimentos narrados de maneira linear. Nestes casos, a distância que separa um grande realizador cinematográfico, ciente da autonomia de sua linguagem artística, o cinema, daquele mero burocrata, que segue à risca as orientações de um papel, o roteiro, ainda que ele tenha seu valor, vêm à tona. Gravidade, portanto, evidencia as qualidades narrativas de um realizador mexicano que tem que ir aos EUA para alcançar a extratosfera da realização profissional. Em meio ao CGI aplicado com texturas críveis e uma platicidade inigualável - graças, em parte, ao usual e estupendo trabalho fotográfico de Emmanuel Lubezcki -, a tecnologia 3D de ponta e imersiva como nunca, Cuarón encontra o caminho da autenticidade cinematográfica e finca seu nome para o agora e a posteridade com uma realização ímpar através do seu novo filme.

A premissa de Gravidade, como já dito, é simples. Basicamente, o filme se sustenta através do mote dos "filmes de sobrevivência" ao narrar a história de uma engenheira hospitalar e um astronauta surpreendidos pela chuva de destroços de um satélite enquanto consertavam o telescópio Hubble. Após o incidente, ambos ficam à deriva na órbita da Terra, tentando encontrar uma forma de sobreviver e pedir resgate. Unidos por um cordão, os dois são repentinamente separados e deste momento em diante, o longa passa a acompanhar a tentativa de sobrevivência da Dra. Ryan Stone, vivida por Sandra Bullock.

Em meio a movimentos de câmera giratórios e desorganizados, os primeiros vinte minutos de Gravidade são contados sem corte e trilha por um Alfonso Cuarón que desde o primeiro segundo da produção deseja inserir o espectador no silêncio e na ambiência nauseante do espaço. Em situações pontuais, especialmente aquelas em que há uma tensão emergente e a aparente leveza do "estar em órbita" é interrompida pelo choque entre objetos e destroços ou entre estes e os personagens, o filme é conduzido por uma trilha igualmente nauseante e propositalmente desarranjada de Steven Price, que ainda tem a delicadeza de adicionar composições ternas em momentos dramáticos da personagem de Sandra Bullock. Ainda encontramos a consciência imagética  e a sensibilidade metafórica de Emmanuel Lubezcki que traz para a história conexões com o nascimento, o surgimento de um novo ser  a partir de uma situação de sobrevivência, de luta contra as adversidades naturais (no momento em que a personagem de Bullock entra em um dos compartimentos da estação espacial e fica em posição fetal em meio ao cordão que a unia ao personagem de Clooney - o corte do "cordão umbilical" que a protegia do universo desconhecido -, a metáfora fica mais evidente).

Para Cuarón e Lubezcki, a experiência da Dra. Ryan Stone se assemelha ao período de gestação e de nascimento da criança. Stone vai para a sua missão repleta de cicatrizes pessoais. Sua tentativa de sobrevivência, assemelha-se às descobertas e luta mês a mês de um feto. No desfecho, a personagem renasce para a sua própria vida após a experiência, aprende a caminhar novamente, cria algumas cascas, se desliga de outras. É uma associação simples e conduzida com delicadeza pelo realizador e por seu diretor de fotografia, mas que apresentam uma sinceridade latente mostrando que muitas vezes a simplicidade é mais certeira que subtextos pretensiosos. No fundo, Gravidade é sobre a resiliência, a transformação através da dor e sobre como somos impotentes em determinadas situações, aquelas que fogem ao nosso controle.
 
Tudo isto não seria tão eficiente caso não contasse com o eficaz desempenho de Sandra Bullock. A despeito de sempre ter suspeitado da capacidade da atriz de construir personagens, incluindo no seu trabalho vencedor do Oscar, Um Sonho Possível, Bullock cai como uma luva nos propósitos de Gravidade. Apesar de ser basicamente uma interpretação reativa, na qual a personagem basicamente responde às situações ao seu redor (algo que me lembrou bastante o recente desempenho de Naomi Watts em O Impossível, igualmente memorável), Bullock consegue dar consistência e propósitos à Dra. Ryan Stone, com muita sutileza e poquíssima afetação. Desta vez, não resta dúvidas, a atriz merece todos os elogios que vem colhendo. Igualmente interessante está George Clooney, sempre carismático e trabalhando em cima da sua própria persona, que acaba entrando em processo de simbiose com Matt Kowalski, seu personagem no filme.
 
Assim, Gravidade, como deveria caminhar naturalmente o cinema, reúne o melhor em seus esforços humanos e artísticos com tecnologia de ponta. O novo trabalho de Alfonso Cuarón evidencia a estupidez de intelectuais que insistem em separar o entretenimento da arte ou de tecnicistas frios que esquecem que antes dos efeitos em CGI, o melhor caminho para acessar o coração do espectador é através da alma, das histórias humanas. E Gravidade, antes de ser um grande feito tecnológico, um novo parâmetro visual para o que será feito de agora em diante na indústria cinematográfica, é uma história extremamente humana, tocante, edificante e inspiradora. Cuarón acessa novamente os nossos corações.
 
 

Gravity, 2013. Dir.: Alfonso Cuarón. Roteiro: Alfonso Cuarón e Jonás Cuarón. Elenco: Sandra Bullock, George Clooney, Ed Harris (voz), Paul Sharma (voz), Amy Warren (voz), Orto Ignatiussen (voz), Basher Savage (voz). 91 min. Warner.
 

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Chovendo Sapos: Crítica: Gravidade
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