Quarta temporada de AHS, Freak Show mostra a aberração na "normalidade"


Desde que American Horror Story teve início, os seus criadores Ryan Murphy e Brad Falchuk exploraram as gamas do horror presentes em universos conhecidos do gênero com variações diferentes de êxito: em Murder House, exploraram as tramas das casas mal assombradas por fantasmas numa temporada dosada principalmente pelo humor; na sequência, Asylum trouxe para o show um tom de gravidade maior ao explorar temáticas sérias e de vínculos históricos ambientadas em um sanatório; terceira temporada da série, Coven, o ano mais divergente de todos do show, retoma o humor e assume sua centralidade no feminino ao narrar os conflitos de um grupo de bruxas numa escola preparatória em Nova Orleans. Em todas estas temporadas, a maior força do trabalho de Murphy e Falchuk é manter a assinatura de ambos em suas histórias, ainda que elas sejam ambientadas em universos completamente distintos (para quem não é familiarizado, cada temporada funciona como uma minissérie) e sem aparente conexão (bom, até Freak Show). Para o bem ou para o mal, você reconhece um episódio de American Horror Story em sua narrativa hiperbólica, desordenada, caótica pela composição cênica, organização dos seus planos e logicidade de funcionamento própria das suas tramas em apenas uma olhada.

Freak Show é uma continuidade de todos esses esforços de afirmação de personalidade dos criadores de American Horror Story. Em seu quarto ano, Murphy e Falchuk se aventuram pelo universo do circo de "aberrações" e mantém todas as características que conduziram as temporadas anteriores da atração. Claro que os criadores exploram os elementos do gênero que este universo tende a oferecer, o público tem contato, por exemplo, com um serial killer trajando as vestimentas de palhaço; há o tradicional episódio do Halloween, no qual uma entidade é convocada e tem que levar um freak para o mundo dos mortos; e litros de sangue e mortes bárbaras desfilam em todos os seus episódios. Acontece que Freak Show não se sustenta apenas na promoção de efeitos de terror no seu espectador e, assim como a melhor temporada da série até então, Asylum (segundo ano), sublima todas as expectativas ao oferecer uma história emocionalmente engajada que desconstrói as noções de monstruosidade através da oposição entre as ações e relações de afeto conduzidas pelos freaks da atração comandada por Elsa Mars, personagem de Jessica Lange, e àquelas relativas aos personagens "normais" da sua trama.


A história de American Horror Story: Freak Show é ambientada em Júpiter, cidade do interior da Flórida, em 1952. Nela, uma trupe de artistas circenses conhecidos por suas anomalias físicas ou mentais acaba de chegar para novas apresentações. A idealizadora e administradora da atração, a imigrante alemã Elsa Mars, preocupa-se com o futuro pois com a chegada da televisão, as pessoas não estão mais saindo de casa impulsionadas pelo desejo de ver de perto seu espetáculo freak. Planejando sua saída do ramo, Mars deseja passar o bastão com o negócio em alta e investe em uma nova atração, as gêmeas siamesas Dot e Bette Tattler (Sarah Paulson), que passaram anos de suas vidas isoladas do mundo por sua mãe e são chantageadas pela estrela do freak show depois que policiais as encontram no cenário de um crime muito suspeito. Em Júpiter, Dot, Bette e as demais atrações do circo passam a ser objeto de cobiça do mimado Dandy Mott (Finn Wittrock), cujos caprichos estão cada vez mais doentios e não são mais controlados por sua mãe negligente Gloria Mott (Frances Conroy), e Stanley e Maggie (Denis O'Hare e Emma Roberts, respectivamente), dois vigaristas que chegam a cidade interessados em vender partes dos corpos dos freaks a um "museu" de "aberrações". Em meio a tudo isso, Júpiter é assolada por uma onda de assassinatos empreendidos por um homem vestido com roupas de palhaço apelidado de Twisty.

Ainda que aqui e ali em Murder House, Asylum ou Coven, Murphy e Falchuk tenham preenchido suas histórias com respiro e momentos de forte envolvimento emocional, Freak Show é guiado pelos vínculos fraternos dos freaks do circo de Elsa, que diante da rejeição do mundo a suas deformidades parecem encontrar amparo, carinho e a dignidade da sua própria existência na relação com seus semelhantes. Tal elemento é muito mais forte do que as altas doses de horror e carnificina que o show tende a inevitavelmente produzir, afinal Freak Show faz parte de uma grande antologia de horror.

Em contrapartida, fora das tendas circenses, entre os personagens que não apresentam as anomalias dos freaks, o público tem contato com relações frias e personalidades doentias e vazias que colocam a vida das principais atrações do show Elsa em risco. O principal deles é Dandy Mott, um playboy mimado por sua mãe que expõe sua natureza psicopata em ascensão ao longo de toda a trama, e o vigarista Stanley, que arquiteta planos macabros de assassinato para obter um retorno financeiro com as anomalias de Dot, Bette e cia.. Mais tarde, outros personagens entram na trama e reforçam essa oposição: Chester, vivido por Neil Patrick Harris, um mágico com aparentes sinais de esquizofrenia e objeto de interesse amoroso de uma das irmãs interpretadas por Sarah Paulson; e a irmã e o cunhado de Pepper (Naomi Grossman), capazes de uma atrocidade sem tamanho no episódio "Órfãos". É nessa oposição e em meio a tais provocações que Freak Show trafega: quem são os verdadeiros monstros? Onde está a tal da "normalidade"? De certa forma, toda American Horror Story foi marcada por este conceito, desde Murder House a sentença "Pessoas normais me assustam" ressoa em todas as temporadas de diferentes formas, mas aqui parece que  tudo é ainda mais forte.


A quarta temporada tem ainda como forte preocupação a costura de uma gradual reflexão sobre o lugar dos seus personagens no mundo. O circo de Elsa é uma espécie de "não lugar" onde pessoas com deficiências acabam encontrando acolhimento após serem rejeitadas por suas famílias ou pela sociedade de uma maneira geral. É naquele "não lugar" que suas características próprias passam a ser vistas com outros olhos que não os de repulsa e é lá, junto aos seus semelhantes, que esses personagens criam laços de afeto mais consistentes e completos. Ainda assim, não é o melhor lugar possível, tudo porque é uma das últimas casas de apresentação que está aberta e passa por uma fase de instabilidade que beira a falência.

Assim, a atmosfera predominante é a de decadência e de incertezas quanto ao futuro, que já não guardava as melhores perspectivas para esses personagens. É por esta via que Murphy e Falchuk também revelam a sua ternura por seus freaks e pela humanidade que eles expõem ao longo de toda a temporada. Há uma melancolia e estranheza incomoda inerente àquele "não lugar" habitado e que expõe a contradição dessas personagens: o desejo da "normalidade" para não vivenciarem mais as agruras já vividas e as quais ainda são sujeitados fora daquele microuniverso do circo de Elsa; e o prazer da percepção de que são diferenciados em comparação a todo um grupo social que os rejeita. O olhar terno que Murphy e Falchuk reserva a esses personagens amplia a percepção de que o resquício de humanidade daquele mundo sujo que eles habitam está no senso de fraternidade e de acolhimento das suas peculiaridades, algo que eles só vivenciam no freak show. Mesmo em seus atos mais violentos, essas personagens são movidas por instinto de sobrevivência, agem para preservar o pouco de dignidade e condição humana que conseguiram no mundo, ao contrário de figuras como Dandy, Stanley ou Chester que são movidas por pura crueldade, ganância ou loucura.


Como ocorre em toda temporada de American Horror Story, o elenco de Freak Show e as camadas que Ryan Murphy e Brad Falchuk investem em seus personagens são alguns dos pontos altos da temporada. Jessica Lange, grande estrela da série até o quarto ano (na próxima, Hotel, a veterana foi "substituída" por Lady Gaga), faz a sua grande despedida do show com uma personagem fascinante. A Elsa Mars de Lange é uma mulher consumida pela inveja e pela carência de aplausos. Escondendo a sua própria condição de freak, Elsa não consegue as atenções da plateia que seus demais colegas obtém pela simples exposição das suas características físicas. A vergonha e o trauma, portanto, acabam condenando a personagem a um tormento sem fim, transformando-a em uma figura dúbia durante toda a temporada. Mars é capaz de atrocidades, mas também de atos de profunda generosidade e instinto maternal. Lange carrega toda esta natureza conflituosa da pretensa estrela do freak show com fúria e delicadeza, transformando o episódio final "Fecham-se as Cortinas" em sua despedida carinhosa de uma série que revigorou a sua carreira e a apresentou a uma nova geração que não conhecia o seu trabalho no cinema. Em American Horror Story, Jessica se reinventou, foi a grande estrela e honrou a camisa da sua equipe até o fim com performances viscerais como esta última.

 A temporada também reserva ótimos momentos para outros atores. Se Lange, Angela Basset e Kathy Bates são as grandes divas de American Horror Story, com anos de carreira no cinema e indicações/vitórias no Oscar, oscilando na série entre momentos que fizeram jus às suas respectivas famas e outros nem tanto, Sarah Paulson foi a atriz mais regular, sempre respondendo de maneira impecável aos desafios impostos por Murphy e Falchuk por intermédio das complicadas personagens que já interpretou na série. Em Freak Show, Paulson compõe com maestria as distintas personalidades das siamesas Dot e Bette e consegue conferir credibilidade à complicada relação entre as irmãs, um dos pontos-chave da temporada desde o seu início, quando a câmera, que acertadamente sempre procura individualizar suas emoções e percepções do mundo. O jovem Evan Peters, outra figurinha conhecida do elenco da série, é outro que tem seus grandes momentos nesta temporada como Jimmy Darling, o garoto lagosta. O ator, que tivera um personagem infeliz em Coven, ano três de American Horror Story, volta à antiga forma encarnando com carisma o líder do grupo de freaks. Freak Show também é palco para Naomi Grossman, atriz que dá vida a Pepper, a personagem que faz a mais evidente conexão entre as temporadas da série até então. A personagem diagnosticada com microcefalia ganha um momento só para si no episódio 10 "Órfãos", no qual conhecemos a história de Pepper, um dos pontos mais comoventes de todo American Horror Story. Difícil segurar a emoção nesse respiro da temporada que ganha contornos delicados graças à performance cuidadosa de Grossman.


E se mencionamos os destaques do elenco, não poderíamos deixar de fora Finn Wittrock, peça fundamental para o desenvolvimento do conceito e do discurso de Murphy e Falchuk sobre "aberrações" em Freak Show. O Dandy do ator é a personificação do mal encarnada na figura de um rapaz rico e bem apessoado, cercado por mimos da sua mãe que sempre atendeu às excêntricas vontades do filho desde pequeno. Protagonizando os seus atos mais macabros em um quarto repleto de referências infantis, Dandy transforma-se na maior ameaça aos freaks, ocupando um lugar na temporada cuja expectativa do público apontava para o palhaço Twisty. Em "Edward Mordrake - Parte 2", episódio 4 da temporada,  Twisty sai de cena e cede espaço para a perversidade de Dandy dominar a série, deixando claro que o palhaço era uma alma atormentada, enquanto o playboy é o mal em sua essência mais pura, simples e apavorante. O jovem Wittrock assume muito bem esta responsabilidade, fazendo de Dandy um sujeito tendente a posições frias a respeito das suas relações com as coisas do mundo, agindo como uma criança birrenta e cheia de vontades, mas também como um narciso que vê a si próprio como uma figura ausente de imperfeições e imune a qualquer sanção sobre os seus atos cruéis, um deus (ou um demônio), na sua própria definição.

Assim, ao conduzir esse olhar sobre o lugar onde de fato encontramos as aberrações mundo afora, Freak Show se aproxima daquela que fora a melhor temporada de American Horror Story, Asylum, cujo êxito foi, justamente, encontrar esse equilíbrio entre o show de horror e o seu olhar para a fonte do verdadeiro mal, àquilo com o qual devemos realmente nos apavorar. E se em Asylum ele não estava concentrado apenas nas manifestações demoníacas ou nas abduções alienígenas, aqui ele não se encontra nas "aberrações" do freak show de Elsa Mars ou na icônica imagem do palhaço serial killer, mas naquilo que é socialmente aceito, reconhecido e admirado. Freak Show só não supera Asylum por oferecer um final de temporada aquém do que desenvolvera em todos os seus demais episódios. De uma maneira geral, no entanto, a manutenção da sua forte personalidade como produto televisivo, sua compreensão a respeito do que nos causa horror e do que deveria nos inspirar, ao menos, desconfiança e cautela e a ternura que reserva aos seus personagens tornam a temporada um dos pontos altos da trajetória de American Horror Story na TV americana.

American Horror Story: Freak Show, 2014. Criadores: Ryan Murphy e Brad Falchuk. Elenco: Jessica Lange, Sarah Paulson, Evan Peters, Kathy Bates, Angela Basset, Finn Wittrock, Michael Chiklis, Emma Roberts, Dennis O'Hare, Frances Conroy, Naomi Grossman, Neil Patrick Harris, Jyoti Amge, Danny Huston, Grace Gummer, Wes Bentley, Celia Weston, Gabourey Sidibe. FX, Disponível em DVD e no Netflix. 

Assista ao teaser da temporada:

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Chovendo Sapos: Quarta temporada de AHS, Freak Show mostra a aberração na "normalidade"
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