Fé e política: Juiz Claude Frollo, 'O Corcunda de Notre Dame'


Quando trazemos numa roda de conversa qualquer uma das principais animações dos estúdios Disney na década de 1990, a lembrança comum nos leva a títulos como A Bela e a Fera, O Rei Leão ou até mesmo Mulan, um dos últimos exemplares do grupo. Dificilmente vemos em coro defensores de O Corcunda de Notre Dame, longa que chegou aos cinemas em 1996. Algo que, particularmente, nos traz um certo ressentimento afinal o filme é uma das obras mais maduras temática, técnica e artisticamente dessa fase do estúdio.

O silêncio é compreensível, no entanto. Dentre todos os títulos do catálogo Disney, O Corcunda de Notre Dame,  longa de animação de Gary Trousdale e Kirk Wise, os mesmos de A Bela e a Fera, talvez seja aquele que mais abraça o caráter sombrio de sua trama e dos seus personagens, sobretudo o seu vilão Frollo, que misturando fé e política à serviço dos seus próprios interesses, desejos e da visão distorcida e doentia que tem das pessoas e da sociedade, sendo capaz de atos monstruosos e mesquinhos nesta adaptação do romance homônimo de Victor Hugo. 

 Frollo consegue ser o pior tipo de vilão pois é daqueles que pratica todas as suas perversidades  levantando o nome de Deus como forma de acreditar que todas elas possuem legitimidade e respaldo divino. Frollo utiliza toda uma base religiosa e o aparato público que detém em suas mãos como juiz para realizar atos que só atendem aos seus interesses privados - pior pessoa, né? -, fazendo com que O Corcunda de Notre Dame tenha sido uma das animações Disney que mais chegaram próximo de criar um vilão com ecos palpáveis na nossa realidade, afinal essa combinação de "fé", justiça e poder em prol de ações escusas é uma composição cíclica no nosso mundo.

Até aqui, portanto, chegamos à certeza de que Frollo é daqueles personagens que você olha e não tem dúvida, é a encarnação do coisa ruim na Terra:




Por que amamos odiar?
O Corcunda de Notre Dame traz consigo uma cartela de temas espinhosos como o preconceito contra a deficiência física na triste história do sineiro Quasimodo e a mistura entre religião, política e justiça, gerando "crias" como a intolerância, a violência e a hipocrisia materializadas na figura diabólica do seu vilão. Essa combinação de temas era enfrentada sem parcimônia por um filme que, na tradição dos contos morais do estúdio, e como Trousdale e Wise fizeram em A Bela e a Fera, procurava entender que a definição de homem e monstro está além daquilo que se manifesta na aparência, já que, no final das contas, Quasimodo, que fora afastado do convívio social por sua deformidade lombar, era o verdadeiro mocinho e herói da trama, restabelecendo a paz e a justiça em Paris, enquanto Frollo, um homem que se autointitulava defensor de bons valores e porta voz dos desígnios de Deus, é capaz de pôr fogo em toda a cidade e expor sua população a um estado de completa insegurança.

A princípio tive dúvidas se o personagem merecia estrear a coluna Vilões que Amamos Odiar pois é difícil ter algum tipo de prazer na experiência de assistir a trajetória dele em O Corcunda de Notre Dame, mas acredito que acompanhar seus atos seguidos de seu desfecho e do destino de Quasimodo seja uma das experiências mais catárticas que a Disney já foi capaz de nos proporcionar e isso tem relação com a construção gradual da vilania de Frollo no longa. Acompanhar a evolução da loucura do personagem e perceber que ele é daquele tipo que não tem a menor possibilidade de redenção no final do terceiro ato, vendo-o literalmente queimar vivo em toda sua mesquinharia e sordidez humana é uma experiência, de fato, catártica, ainda que não soe politicamente correto afirmar isso. 

O filme
Sobre O Corcunda de Notre Dame como obra, ainda que traga consigo pinceladas das marcas atribuídas a uma animação musical Disney da época como seus números, coadjuvantes carismáticos (as três gárgulas de Notre Dame) e uma combinação de elementos que é garantia da aceitação do filme pelos mais diversos públicos (comédia, drama, ação, romance etc.), desde a abertura do longa nos revelando a imagem do topo da basílica de Notre Dame em Paris coberta por nuvens ao som da trilha grandiloquente marcada por coros religiosos de Alan Menken dava para notar que existia algo no tom do filme, que, para seu próprio bem ou mal, o distinguia dos seus antecessores e sucessores e esse tom não deixa de ter como principal responsável os atos do seu vilão como entrega o narrador Lupin:



Primeiros atos de vilania
Seguindo a abertura, vemos o grande vilão do filme cometer sua primeira monstruosidade, daquelas que o põe indubitavelmente entre as figuras mais sinistras da Disney. Numa mesma sequência, Frollo destrata um casal de ciganos pela sua condição, persegue a cavalo a mãe com seu bebê no colo até a entrada da catedral de Notre Dame, no conflito  pela "posse" da criança, acaba assassinando sem remorso a mulher e ao perceber que o bebê em questão, o corcunda do título da obra, possui uma deficiência ensaia deixar a criança à própria sorte jogando-a num poço em pleno inverno. Tudo isso no meio da noite, entre trovoadas e composições visuais que não deixam dúvida ao espectador: esse é um dos homens mais asquerosos que você conhecerá na vida.  O ato de Frollo permeia toda a trama de O Corcunda de Notre Dame e, consequentemente, contribui para o tom, muitas vezes, predominantemente soturno do longa. Veja a cena completa:



Paixão reprimida
Ao longo do filme, ficamos sabendo ainda que Frollo, cioso do seu compromisso com Deus e perseguindo os ciganos por toda Paris em nome dessa fé, nutre uma paixão obsessiva pela cigana Esmeralda. Isso, inclusive, é tema do número musical "Hellfire", no qual, como num delírio da fixação carnal de Frollo pela cigana, o personagem vê a silhueta de Esmeralda nas chamas da lareira ao mesmo tempo em que sente ser olhado pelas imagens religiosas que o cercam em seus aposentos no Palácio da Justiça. Acho que nunca chegaremos perto de uma Disney tão sombria quanto aqui...




E, ao longo de todo filme, Esmeralda dá sinais de que é uma das poucas que entende qual é a razão da perversidade de Frollo em suas ações. A cigana não apenas o enfrenta, como no momento em que clama por "justiça" quando o juiz deixa que toda Paris caçoe de Quasimodo no Festival dos Tolos, mas também quando deixa o vilão desconcertado com sua dança na frente de todos. Quando o juiz constata que uma das poucas pessoas sob a qual não possui domínio é Esmeralda, o ódio dele pelos ciganos e sua loucura só aumentam levando-o a atitudes que colocam em risco a vida do seu "objeto" de adoração.  



Quasi X Frollo
Além de ser uma evidente crítica ao casamento hipócrita da religião com setores do poder de nossa sociedade e como os mesmos podem cometer atrocidades alegando motivos de fé para encobrir questões pessoais mal resolvidas, há um um outro elemento que torna Frollo ainda mais interessante para a galeria de vilões da Disney, sua relação com o protagonista do filme Quasimodo. Trata-se de um quadro de dependência afetiva que beira a síndrome de Estocolmo, já que Frollo mantém Quasimodo desde pequeno escondido de toda a sociedade no campanário de Notre Dame.

Obrigado pelo religioso da catedral, Frollo faz com que Quasimodo o tenha desde pequeno como uma figura paterna, como forma de compensar ele ter sido o principal responsável pela morte de sua mãe. Frollo inventa uma história mal contada de que a mãe de Quasimodo o abandonou e incute na cabeça do rapaz ideias que fragilizam sua autoestima ("seu aleijão é muito feio", "você é um monstro"), distorcendo a imagem que ele passa a ter de si próprio. Isso é manipulação das brabas! Ao colocar em primeiro plano sua aparência física, Quasimodo nunca consegue enxergar as qualidades do seu caráter, algo que só passa a perceber quando conhece a própria Esmeralda.



Conseguimos medir o nível de perversidade de Frollo pelo teor de bondade e pureza dos atos de Quasimodo. Quasimodo é o grande herói de O Corcunda de Notre Dame, verdadeiro opositor dos atos de Frollo. Enquanto Quasi é capaz de confiar cegamente nas pessoas, mesmo que muitas vezes não mereçam sua confiança, e enxergar bondade em criaturas como Frollo, o juiz, só para citar alguns de seus atos diabólicos no filme, tem a vilania como cotidiano sugerindo punições como incendiar casas com seus pobre moradores dentro ou açoites com intervalos de tempo maiores para que o condenado possa de fato sentir a dor entre uma e outra chibatada.

O destino da personagem
Como todo bom vilão que se preza, e nisso justificamos o fato de amarmos odiar uma figura tão repugnante quanto Frollo, o desfecho do juiz tinha que ser o pior possível, com direito às clássicas vinculações de signos do inferno como manda a tradição Disney (lembram de Scar em O Rei Leão). Frollo morre carbonizado após despencar de uma gárgula de Notre Dame que não suporta o peso do juiz, bom, isso se não acreditarmos numa mãozinha de forças espirituais que se encarregaram de despachar a alma podre do personagem para outra dimensão. 



Curioso é perceber como a ideia de que o personagem poderia escapar aos olhos humanos, mas não da catedral que testemunhou alguns dos maiores crimes do personagem ao longo da história, entre eles a morte da mãe de Quasimodo, está presente no desfecho do personagem. A gárgula na qual Frollo se agarra ganha vida e surge na cena como o juiz dos seus atos.


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Fé e política: Juiz Claude Frollo, 'O Corcunda de Notre Dame'
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